quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Escolha

 

        A solidão é meu retiro. 

        Ao burburinho surdo e vão 

        de tantas falas sem sentido,

        prefiro ouvir meu coração. 

 

        Muitos me apontam o caminho

        (sem nem saber se é bom ou ruim),

        mas, como quero ser sozinho, 

        sigo um trajeto afeito a mim. 

 

        Se no futuro, arrependido,

        a tais apelos me render, 

        não vou negar o tempo ido

        nem do passado escarnecer,

 

        pois cada um retém a soma 

        do que perdeu ou conquistou. 

        E a solidão não abandona

        quem dela fez seu cobertor. 

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Haicais em Amsterdã

 


                                    I

                Bairro da Luz Vermelha, 

                onde o sexo tem luz verde

                – invertida centelha. 

 

                                  II

                Vivos manequins 

                nos acenam das vitrines

                – leva quem der mais.

 

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Quem?


 

Quem contará minha história 

quando eu já for esquecido?

Quem – se não me coube a glória –

dirá dos meus passos idos? 

 

Das sombras que me engolfavam?

Das mil ações incompletas? 

Da frieza dos enlaces?

Da minha ansiedade quieta? 

 

Do desgosto disfarçado 

em sábias ponderações? 

Ou dos recuos plasmados 

no ânimo das deserções?


Quem falará – se está morto

quem poderia dizer

melhor do que qualquer outro 

o que não consegui ser? 

 

Se não houver, pouco importa, 

os que possam fazer isso. 

Ao se fechar a comporta, 

levarei tudo comigo. 


domingo, 19 de março de 2023

O retrato


                              Para Flávio Tavares

Não poucas vezes durante a semana

ele se punha diante do espelho,

na tentativa pertinaz, insana,

de desvendar o seu próprio segredo.


Mas via, aflito, quando se mirava,

uma figura que mais parecia

a soma esdrúxula, hedionda e parva

de rostos mil que foram seus um dia.


Quem era aquela estranha multidão

a lhe estender os olhos de agonia

num desespero que não tinha idade?


Veio-lhe um dia a revelação:

o que o espelho, em síntese, refletia

era o retrato da humanidade.

terça-feira, 7 de março de 2023

Faço, logo sou

 

Um meio de tornar mais fácil a vida       

e furtar-se ao intenso padecer  

é vivê-la na calma e na medida,      

sem outra aspiração que a de fazer.

 

Fazendo, dá-se ao tempo boa empresa,

mesmo que o feito seja pequenino

e que nele não haja o que mereça          

dos outros louvação, aplauso ou hino.   

                                      

Fazer sem presunção nem vaidade,     

imune ao conto da felicidade,     

que menos dá quanto promete mais.

 

E quando nada mais puder ser feito,

saber que se fez tudo tão direito,

que se merece enfim morrer em paz.  

Sonho de Carnaval

 

Carnaval. Com temor e nostalgia,     

abri o velho baú de guardados

para envergar o traje em que iria        

sair mais uma vez fantasiado.     

 

Vi então que era outro o seu aspecto

e que, na superfície amarelada,

o pó lhe impregnara um ar senecto

de coisa ressentida e já passada.    

 

Desisti de brincar e o pus de lado,   

estimando a verdade e a benesse   

que de tal episódio eu extraía:   

 

não se retorna ao sonho acalentado,

pois, à medida que a gente envelhece,  

também fenece a nossa fantasia.


Escolha

            A solidão é meu retiro.            Ao burburinho surdo e vão            de tantas falas sem sentido,           prefiro ouv...