quinta-feira, 20 de outubro de 2022

50 quadras linguísticas

 


                 1

Tem gente que não consegue

entender uma ironia.

Já vi mulher dar a bênção 

ao ser chamada de “tia”!

 

                 2

Usar o diminutivo

nem sempre mostra carinho.   

Quanto não há de desprezo

quando se diz “Pobrezinho...”!

 

                  3

Coitado do verbo “ser”!

Tão virginal e pudico,

foi incluído no grupo    

dos verbos “copulativos”.

 

                  4

O hiato no casamento

daqueles dois é assim:

quando ela hoje diz “ai”, 

ele diz “não estou a-í”.

 

                  5

A crase é o pesadelo

daquele pobre rapaz.

Nunca entendeu como um “a”

pode ser também dois “as”.

 

                  6

Outra coisa, na gramática,

lhe parece não ter nexo:    

como é que uma palavra

pode ser um “objeto”? 

 

                 7

Se o que foi deixa saudade    

e nos faz doer o peito,   

como é que pode o pretérito 

ser chamado de “perfeito”?

 

                 8

Gramática e amor se bicam.   

São como fé e ciência.

Não dá pra dizer “Te gosto”

sem massacrar a regência.

 

                 9

O verbo é o centro de tudo

(a base da oração),

mas concorda com o sujeito 

mesmo contra a opinião.

 

                10

Falar em sujeito oculto

é dar um tiro no pé.  

Se está oculto, por que

sempre se sabe quem é?!

 

                11

O oximoro nem sempre       

altera a lógica e o siso.   

Alguém pode, endinheirado,

não passar de um pobre rico...

 

                12

Na gramática da vida

nem tudo é bem arrumado.  

Nela sobram os sujeitos

a quem faltam predicados.

 

               13

Que diria a interjeição

se a nós ela falasse?

Que a dor e a alegria

filiam-se à mesma classe.

 

               14

A língua define o “gênero”,

que hoje é vago e incerto.

Ao registrar a criança,

é bom deixá-lo em aberto.

 

               15

Não dá pra compreender

(a não ser por masoquismo)

que alguém prejudicado

“corra atrás” do prejuízo!

 

               16

Cabe na polissemia  

esta fatídica trapaça:

quem mais faz graça da vida

é quem nela não vê graça.

 

               17

Às vezes a homonímia

deixa a gente numa boa.

Coroa minha autoestima

quem me chama de coroa.

 

               18

Se um só ponto já basta 

para fechar a sentença,  

como é então que três pontos

indicam uma... reticência?!

 

                19

Não se acentua oxítono

terminado em “i” e “u”.

Só mesmo “tomando uma”

para acentuar “Pitu”!

 

                20

Nem toda metáfora é nobre.

Quando ele a chama de “anjo”,

quer que ela abra as asinhas

e acolha seus desarranjos.

 

                21

O melhor do paradoxo

é o que dele está além.  

Vê mais longe quem percebe  

que a multidão é ninguém.

 

                22

O tal “plural da modéstia”

é conversa pra bocó.

Onde é que se mostra humilde

quem diz “Somos o melhor”?!

 

                23

“O mundo é dos mais espertos”

– eita eufemismo dos bons!

Pois se quer dizer, decerto,   

que este mundo é dos ladrões!

 

               24

Foi pela sinestesia

que ela matou nosso caso: 

o olhar endurecido! 

o sorriso enregelado!

 

               25

Palavras mudam de classe.   

Mas quem vai reclamar disso  

quando a garota lhe dá 

um “sim” bem substantivo?

 

               26

No capitalismo é assim: enquanto uns têm venda nos olhos, outros têm os olhos nas vendas.

 

               27

Se o professor lhe pergunta

o que é aliteração,

ele tateia, tropeça,  

tremelica – e não diz não!

 

               28

Por pensar que antonomásia

fosse o nome da inspetora,

ele hoje é conhecido 

como “o Bobo da Escola”.

 

               29

Um caso de metonímia

é o que ocorre nas bodas.

Pede-se ao pai da moça “a mão”,

e fica-se com ela toda!

 

               30

Imitar o som do grilo

é só onomatopeia.

Já ouvir alguém cricri

é de torrar a ideia!

 

               31

Por verbos defectivos 

nem sempre tenho respeito.  

Quando estou “com o cão no couro”,

eu lato, zurro e trovejo!

 

               32

Na língua se acha o tal,  

porém não passa de um tonto, 

pois decora os coletivos

mas não sabe usar o ponto.

 

               33

Se a metáfora é um clichê,

perde a beleza e o frescor.

Evite dizer que a moça

de quem gosta é “uma flor”.

 

               34

Muitos usam da hipérbole

sem temor ao destempero.    

Eu sou o único no mundo

que não cometo exagero!     

 

 

               35

Explicando o arcaísmo,

disse-nos o lente, à sorrelfa: 

“Português bom e castiço    

é o que de antanhos se mescla...”.

 

               36

O quiasmo é a inversão

das palavras em espelho.  

Entendê-lo não é difícil.

Difícil é não entendê-lo.

 

               37

Reflexão crucial     

que a paronomásia inspira:    

há momentos nesta vida   

em que a gente ou para, ou pira!

 

               38

A prática do intertexto   

não vai alterar o jogo.  

“Minha terra tem palmeiras”,

mas meu time é o Botafogo.

 

                39

Só a palavra-centauro

traduz bem a alternância

entre ansiedade e espera

em que me encontro: esperânsia.

 

 

                40

Se quer dar ao seu leitor

uma escrita clara e reta,

do hipérbato não abuse.   

Prefira a ordem direta.

 

 

                41

Seu desprezo é um pleonasmo

que a mim irrita e maltrata,

pois ela fica em silêncio

e não diz uma palavra!

 

                 42

A imagem do anacoluto  

figura o meu abandono:

a moça, não se lhe dá 

se me faz perder o sono...

 

                43

          Quando o mestre falou “zeugma”,

quase nos deixou sem voz.  

Não entendemos a ele;

muito menos ele, a nós.

 

                44

O verbo é impessoal   

se alude à natureza.

No entanto sei de gente  

que, ao se zangar, troveja!!

 

                45

O abandono do trema

gera confusão por quilo.

Como, sem o tal sinal,

vou pronunciar /trankuilo/?

 

                46

Não há muita coerência  

na divisão do artigo:   

“o homem” indica o geral,

 e não um certo indivíduo!

 

                47

Quando se trata de hipérbole,

dar o desconto é preciso.

Quem diz que “morre de amor”

demonstra que está bem vivo.

 

                   48

Quem usa tempos compostos

flexionando o particípio

certamente em outros tópicos     

mais erros tem cometidos

 

                          49        

Se desconhece a hipálage,

você vai achar sem jeito    

dizer-se, de uma pessoa,  

que “enfia o anel no dedo”.   

 

               50

O epíteto de natureza

faz parecer desvario

alguém que está à mesa

pedir um gelo “bem frio”!

Escolha

            A solidão é meu retiro.            Ao burburinho surdo e vão            de tantas falas sem sentido,           prefiro ouv...